17/12/2025

O ensino técnico pode ajudar a também diminuir a evasão escolar, pois boa parte dos estudantes acham que as empresas não dão condições para o prosseguimento de estudos

O analfabetismo funcional não avançou no Brasil nos últimos seis anos. Essa é uma das principais conclusões de uma pesquisa feita pela Ação Educativa com 2.554 pessoas de 15 a 64 anos, entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025, para mapear as habilidades de leitura, escrita e matemática dos brasileiros. O estudo revelou que 29% dos brasileiros seguem nessa condição, índice igual ao verificado em 2018, ano em que a série histórica da pesquisa, publicada desde 2001, foi interrompida devido à pandemia de Covid-19. “Observamos uma proporção ainda mais significativa de pessoas que, mesmo tendo chegado ao ensino médio, ainda não podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas, com habilidades de letramento e numeramento que se espera que sejam consolidadas no ensino fundamental”, diagnostica Roberto Catelli, coordenador da área de educação de jovens e adultos da Ação Educativa.

Os níveis de alfabetismo são definidos a partir do desempenho em um teste que aborda situações presentes no cotidiano das pessoas, considerando tanto habilidades relacionadas a textos – chamadas de letramento – quanto aquelas relacionadas aos números, designadas como numeramento. De acordo com a nova edição do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), 17% daqueles que chegaram a fazer ou concluíram o ensino médio podem ser caracterizados como analfabetos funcionais, assim como 12% dos universitários que chegaram ao final de seus cursos. Para Catelli, a chegada desses profissionais ao mercado de trabalho é uma incógnita. “Teremos um número significativo de pessoas que, apesar do seu diploma, terão dificuldade de serem incluídas no campo profissional. Por essa razão, tenho dúvidas se isso vai diretamente interferir na competitividade da indústria, ainda mais em posições mais competitivas onde os candidatos demonstrarão mais fragilidades”, argumenta o especialista.

“Quando quase um em cada cinco brasileiros com ensino médio – e até mesmo um em cada dez com ensino superior – apresenta esse tipo de limitação, evidencia-se uma fragilidade estrutural do sistema educacional”, opina Daiane Zanon, gerente de dados, avaliação e monitoramento do Instituto Ayrton Senna. “Para empresas e indústrias onde há setores com forte presença tecnológica e alta exigência de qualificação, isso se traduz em desafios concretos: profissionais com baixa capacidade de compreensão e aplicação do que leem tendem a cometer mais erros, demandar mais supervisão, ter menor produtividade e apresentar menor adaptabilidade a processos complexos e inovadores”, alerta. O analfabetismo funcional surge, principalmente, no ensino fundamental, quando muitos alunos concluem essa etapa sem dominar plenamente habilidades fundamentais de leitura, escrita e matemática. Quando eles ingressam no ensino técnico – seja na modalidade integrada ao ensino médio, concomitante ou subsequente –, apresentam defasagens acumuladas que não desaparecem automaticamente. “O ensino técnico pode ser uma via importante de qualificação e mobilidade social, mas não é uma solução isolada para os desafios da aprendizagem. Para que essa modalidade cumpra todo o seu potencial, é essencial investir desde os primeiros anos escolares em uma base sólida de aprendizagem”, defende Zanon.

Claudia Costin, especialista em educação e ex-diretora global de educação do Banco Mundial, corrobora com essa tese. Ela conta que países que têm bons sistemas educacionais conseguem consolidar a alfabetização inicial já fazendo com que as crianças tenham contato com livros mais complexos. Nações como Estados Unidos, França, Alemanha, Finlândia e Inglaterra também trabalham com produção textual, praticando redação a partir do segundo ano do ensino fundamental e não a partir da primeira série do ensino médio, como se faz no Brasil. Para Costin, é preciso ensinar ainda na pré-escola os fundamentos da consciência fonológica, ou seja, fazer com que os pequenos aprendam os nomes e os sons das letras. “Pesquisas feitas no mundo inteiro mostram que se você não ensinar a decodificar [o nome e o som das letras] 60% das crianças não conseguem se alfabetizar”, afirma, lembrando ainda o fato de que 82% das crianças e jovens brasileiros estudam em escolas públicas.

Outra providência a ser tomada, segundo Claudia, é oferecer ensino em tempo integral, de modo com que os estudantes recuperem o que perderam ao longo da pandemia. “Assim será possível fazer com que uma aula seja muito mais dialogada e que o professor entenda melhor o estágio em que cada aluno está. Se não fizermos isso, traremos danos não só aos direitos que as crianças e jovens têm de aprender, como também à produtividade do país. Precisamos avançar rapidamente na educação”, observa.

Morgado, da CNI, explica que como o jovem aplica o que aprende, o desempenho tende a ser melhor que no ensino médio

Mas nem mesmo o ensino técnico é imune às agruras do analfabetismo funcional. Ao receber jovens com ensino médio completo, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) se depara com profissionais que apresentam deficiência de língua portuguesa, matemática e raciocínio lógico, por exemplo. Para preencher essas lacunas, é preciso fazer um reforço nessas áreas que consome, em média, de 16% a 18% da carga horária dos cursos. Recentemente o Senai também lançou um teste de proficiência linguística baseado em uma ferramenta que utiliza Inteligência Artificial (IA) que avalia o nível de leitura, escrita e interpretação de textos individualmente. “O ensino técnico funciona como um antídoto para o analfabetismo funcional, pois ajuda a reduzir esse gap. Como o jovem está aplicando o que aprende, tem um desempenho melhor do que no ensino médio. Também sofremos ao receber alunos com tais deficiências, mas buscamos ajudar com todos os mecanismos que temos”, contextualiza Felipe Morgado, superintendente de educação profissional e tecnológica da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

O esforço empregado pela indústria nacional tem dado frutos. Mais de 88% dos jovens aprendizes do Senai conseguiram emprego em até um ano depois que concluíram o curso, segundo a pesquisa de acompanhamento de egressos 2022-2024. O indicador de inserção de ex-alunos no mercado de trabalho apresentou aumento de 3,7 pontos percentuais, saindo de 84,8% para 88,5%. A construção civil foi o setor que mais empregou (84,8%) e a TI absorveu 77,4% dos formandos. No Brasil, o programa que combina formação técnica e experiência prática dentro das empresas é voltado para jovens de 14 a 24 anos, sem limite de idade para pessoas com deficiência. Os participantes têm carteira assinada e um contrato de aprendizagem, que define as atividades teóricas e práticas em instituições de ensino qualificadas.

O ensino técnico pode ajudar a também diminuir a evasão escolar, pois boa parte dos estudantes acham que as empresas não dão condições para o prosseguimento de estudos – cenário evidenciado pela plataforma QEdu Juventudes e Trabalho, iniciativa da Fundação Roberto Marinho e o Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) em parceria com a Fundação Lemann, a Fundação Itaú e o Itaú Educação e Trabalho. Um dos dados divulgados pelo site é que 41,8% dos jovens dizem abandonar a sala de aula por ter de trabalhar para sustentar a família, por exemplo. “No modelo do Jovem Aprendiz também é possível trabalhar em um turno deixando outro livre para os estudos. Divulgar a oferta de cursos técnicos e profissionalizantes também pode ajudar a diminuir a evasão, sem contar que remuneração média da indústria é maior do que em outros setores da economia”, sugere Morgado que acumula mais de 20 anos de experiência na área, atuando em empresas do terceiro setor, instituições de ensino superior e na gestão e implantação de grandes ações federais, como o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).

“A formação profissional de qualidade e inovação fazem Santa Catarina se destacar”, destaca Pereira, do Senai/SC

Pleno emprego
No Sul, Santa Catarina vive o boom do pleno emprego com uma taxa de desocupação de 3%, diante de uma média nacional de 7%. Mesmo assim, o estado catarinense não está imune aos efeitos do analfabetismo funcional. De um lado, as empresas enfrentam dificuldades para encontrar profissionais qualificados e até mesmo sem qualificação, o que compromete tanto a produção quanto a produtividade. De outro, a facilidade de inserção no mercado de trabalho pode gerar uma falsa percepção de que a escolarização formal ou a qualificação profissional não são necessárias, condição que leva muitos jovens a abandonarem o ensino médio ou a deixarem de buscar cursos de qualificação, o que contribui diretamente para o agravamento do problema. Além disso, o analfabetismo funcional gera custos indiretos às empresas, como retrabalho, necessidade de supervisão constante, maior ocorrência de erros e menor agilidade na adoção de mudanças.

“Estamos atentos à situação, e agindo. Exemplo disto são os programas de EJA profissionalizante, que permitem que jovens e adultos retomem os estudos ao mesmo tempo em que desenvolvem competências alinhadas às demandas da indústria. O resultado é a redução do analfabetismo funcional e a melhora para o mercado de trabalho, ampliando as chances de inserção e progressão na carreira industrial”, revela Fabrízio Pereira, diretor de educação, saúde e tecnologia da Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc) e diretor regional do Senai/SC. Ele conta que Santa Catarina tem uma forte tradição no ensino técnico voltado à indústria, especialmente por meio de instituições como o Senai, o que contribui diretamente para a formação de uma mão de obra mais qualificada e produtiva.

Setor têxtil catarinense se destaca pela formação técnica continuada, mesmo sendo um segmento intensivo em mão de obra

“Porém, é importante destacar que a produtividade não é resultado exclusivo da qualificação dos trabalhadores — ela também está intimamente ligada aos investimentos feitos pelas empresas, como a modernização de equipamentos, digitalização de processos e adoção de tecnologias avançadas. Mesmo assim, quando analisamos os dados, encontramos indícios claros de que setores da indústria catarinense têm produtividade acima da média nacional”, destaca. A indústria de equipamentos elétricos e automação, que combina alta tecnologia com técnicos especializados, tem muitos formados nas unidades do Senai/SC. Outro bom exemplo é o setor têxtil e de vestuário, tradicional no estado, que se destaca pela experiência acumulada e pela formação técnica continuada — mesmo sendo um segmento intensivo em mão de obra.

Referência em educação profissional desde 1954, o Senai/SC registrou 258,6 mil matrículas no ano passado, número superior à população de 289 dos 295 municípios catarinenses. Em abril, foi reconhecido como o melhor Senai do Brasil pelo Senai nacional. A classificação levou em conta o desempenho em sete indicadores, como empregabilidade dos alunos, qualidade da educação e crescimento dos institutos de inovação e tecnologia. Também pudera: 91,6% dos egressos do Senai no estado estão empregados. “O ensino técnico oferecido pela indústria em Santa Catarina é, sim, um diferencial competitivo e um motor importante de produtividade e precisa caminhar lado a lado com estratégias de inovação, investimentos em tecnologia e cultura de melhoria contínua por parte das empresas. Este alinhamento entre formação profissional de qualidade e ambiente empresarial inovador é o que sustenta a posição de destaque da indústria catarinense no cenário nacional”, comemora Pereira. Eis uma prova de que o analfabetismo funcional pode ser vencido – e a competividade industrial pode ganhar corpo com isso.

Esse conteúdo integra a edição 350 da revista AMANHÃ, publicação do Grupo AMANHÃ. Clique aqui para acessar a publicação online, mediante pequeno cadastro.



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